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Gerontofobia e etarismo, com o olhar da saúde: a vida não acaba aos 60 anos

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por Alan C. Andrade
02 de outubro de 2021

De forma geral, o envelhecimento ainda é pouco compreendido e discutido. Isso é um grande problema aqui no Brasil. Em nossas rodas de conversa com profissionais que lidam com envelhecimento, sejam cuidadores e familiares de idosos, gerontólogos, psiquiatras, neurologistas, psicólogos, e profissionais de saúde em geral, todos contam e percebem os olhares desconfiados que os idosos recebem. E - cá entre nós - todos queremos ser respeitados, não?

Os idosos também reclamam. Principalmente, quando vistos como frágeis. Os "velhinhos", muitas vezes ficam incomodados com a discriminação, e com o excesso de diminutivos. E a coisa não está nada bem de uns tempos pra cá. O problema parece só ter piorado com a pandemia da Covid-19, como mostram recentes estudos, relatados em comissão legislativa do Senado. Se é coisa relacionada a idade ou não, o fato é que mais de 800 mil idosos foram demitidos neste contexto.

Hoje, tenho pouco mais de 30 anos. Mas, todos nós não envelheceremos? Não vamos ficar velhos? O que seremos quando idosas ou idosos? Se é consenso que não queremos ser discriminados por quaisquer das nossas características biológicas ou físicas, por que ainda nos discriminamos tanto? Ninguém quer ser considerado um estorvo quando mais velho, e é óbvio que ninguém quer ser discriminado pela sua idade.

Os termos: o que são idadismo, velhicismo, etarismo, e gerontofobia?

A discriminação com base na idade, que em alguns textos científicos em português é chamada de "idadismo" ou "velhicismo" pode ser definida como o estereótipo, preconceito ou discriminação contra as pessoas com base na idade, e é um crescente fenômeno internacional, uma preocupação com implicações importantes para a saúde.

A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia usa o termo “etarismo” para descrever a discriminação etária e alguns textos em português de Portugal, como este do Centro Internacional sobre o Envelhecimento usa também o termo "idadismo". Independentemente de como nós intitulamos este fenômeno - ou idadismo, ou etarismo, ou velhicismo - ele parece estar ganhando alguma relevância social pelo grande movimento de envelhecimento das sociedades. O tema foi objeto de reportagem do conhecido programa “Globo Repórter”, em 2 de abril de 2021.

Recentemente, calouras de Biomedicina da Universidade Unisagrado em Bauru, Brasil, foram flagrados em vídeo zombando de Patricia Linares, uma colega de 44 anos, por ser mais velha. Segundo reportagem, a universidade confirmou que o caso está sendo tratado institucionalmente. O etarismo, como a mídia repercutiu o termo, representa também a discriminação contra indivíduos ou grupos etários, com base em estereótipos. É importante lembrar que esse tipo de preconceito pode assumir muitas formas, desde atitudes individuais até políticas e práticas institucionais que perpetuam a discriminação etária. A injúria das colegas que zombaram da Patricia pode ser tipificada e a universidade pode também ser responsabilizada por danos.

Há também o termo ageísmo em português, também possível de ser encontrado em registros escritos (até em artigos científicos, como este), mas como temos algumas alternativas no português, o anglicanismo me parece algo desnecessário. Encontramos menções ao termo originário em inglês ageism portanto desde 1969, termo que foi cunhado por Robert N. Butler, um dos fundadores do Instituto Nacional do Envelhecimento do Departamento de Saúde (NIA-NIH), nos EUA. Documentos da Organização Mundial de Saúde usam todos estes termos ativamente para descrever e ajudar a conceituar tudo isso, já que o preconceito contra idoso traz algumas consequências indiretas para a saúde, além malefícios coletivos e individuais.

Já é documentado que o estresse associado ao preconceito contra idosos, que aqui eu prefiro chamar de idadismo, pode aumentar risco cardiovascular ou estar associado a má controle de doenças crônicas, e assim como o racismo, também pode ser associado a piores indicadores de saúde, já sendo também já considerado uma ameaça à saúde pública.

 

Material em inglês e espanhol da Campanha Global Contra o Idadismo, da Organização Mundial de Saúde, lançado em março de 2021. Você pode baixar o material aqui.

 

Você já parou para pensar que há tantos aspectos negativos em discriminarmos os idosos, que se nós mesmos tivermos uma visão negativa da idade, podemos envelhecer pior? Num estudo sensacional do ponto de vista da abordagem inovadora sobre o problema, pesquisadores da Universidade de Yale publicaram estudo que predizem que indivíduos mais jovens que tiveram uma visão estereotipada (ou seja, mais negativa) sobre o envelhecimento teriam maior probabilidade de sofrer eventos cardiovasculares (!) - até 38 anos mais cedo - do que indivíduos visões mais positivas sobre a idade. Ou seja: o bom mesmo é encarar a vida positivamente, pois tendo uma visão ruim do envelhecimento, nós envelheceremos com pior qualidade.

Os estereótipos relacionados negativamente com a idade poderiam assim estar relacionados a fatores psicossociais estressores, que estimulariam inflamação crônica. Pelo menos é isso que tentou sugerir em artigo escrito em 2016 a Dra. Julie Ober Allen, da Universidade de Michigan. Pesquisadora da área de inequidades sociais e consequências para a saúde, ela discute ainda que poderia afetar negativamente a saúde de diversas formas, afetando atitudes, a cognição, o comportamento, e performance funcional do indivíduo. A idade avançada já é tão afetada por condições mais frequentes com o envelhecimento que com menos idadismo, provavelmente vamos ter melhores indicadores de saúde, ela argumenta.

Aprendendo com os mais velhos: educação e a hierarquia social baseada na idade

Quando somos jovens, não conversamos muito sobre ficarmos velhos. Insisto novamente em dizer que o envelhecimento é pouco discutido de forma geral. Na realidade, até pouco tempo atrás, por volta da década de 1960, a expectativa de vida média dos brasileiros era de apenas 55 anos e envelhecer era, no mínimo, "menos comum", para não dizer mais raro. Talvez se viam menos velhos nas ruas, e tínhamos menos contato com idosos de forma geral. São os números, o fato. Os mais velhos eram alguns poucos avós vivos. Ou, quem sabe, alguns octogenários e nonagenários famosos por serem estereotipados como ranzinzas, que "roubavam" a bola de futebol das crianças... Hoje, por volta de 2021, vivemos em média mais de 75 anos no Brasil. Muita coisa mudou. Será que era mesmo legal incomodá-los chutando bola nos portões alheios?

Socialmente, as decisões são na maioria dos mais velhos mesmo. Há limitações legais - constitucionais eventualmente - de idade para vários cargos eletivos pelo mundo, e não é diferente no Brasil. Para sermos senadores, ou presidentes, deve-se ter uma idade mínima para tal. Um mínimo de 35 anos é exigido para ser senador, e 37% deles (20 de um total 54 senadores) tinham 60 anos ou mais na eleição de 2018. A experiência da idade é muito levada em conta na hierarquia das sociedades, mas isso não é equitativo entre sociedades diferentes. Fico pensando qual seria a relação da menor convivência com pessoas mais velhas ao longo da vida com o preconceito nos países ocidentais, mas observo que nem todas as sociedades tem estereótipos negativos.

O ancião - um termo curiosamente com sentido mais positivo no português (e no Cristianismo) é considerado fonte de sabedoria e acúmulo de conhecimento, é visto com mais respeito e mais admiração. Na Ásia - há exemplos diversos na Coréia - é muito comum se tratar os mais idosos com pronomes específicos quando mais velhos. A hierarquização por idade é um forte componente social mesmo não havendo diferenças tão grandes para idades para cargos eletivos em diferentes países. De forma geral, na Coréia é considerado rude não saudar alguém mais velho. É algo parecido com chamar "Seu" João, ou a "Dona" Maria com esses pronomes, mas com o adendo de ser algo bem mais digamos, "rigoroso" e com pronomes de tratamento aceitos com menos estereótipos por pessoas mais jovens. A sua colega de faculdade "mais velha", ou aquele seu primo que parece uma "criança grande" de 40 anos, todos eles costumariam ser tratados por pronomes assim.

O que a educação e o conhecimento sobre o envelhecimento tem a ver com a idade? Parece ter bastante coisa a ver. Um dos cernes da educação para o ser humano pode ser entendido como um mecanismo de interação entre gerações. O que é o aprendizado senão um contato de mais velhos com mais novos? Yuval Noah Hariri no seu famoso livro Sapiens explora o conceito de que o Homo sapiens, diferente de muitas outras espécies animais, precisa de um longo período de maturação social e cuidados bastante intensivos dos genitores, por muito mais tempo. No vídeo a seguir, há algumas pensamentos sobre como a interação entre gerações pode ser compreendida neste contexto.

 

No vídeo, em inglês, a Dra. Jennie Bristow, socióloga, autora do livro "Baby Boomers and Generational Conflict", discute aspectos de que a educação das sociedades se relaciona de forma direta com as interações geracionais.

 

Provavelmente o ser humano precisa ser ensinado por mais de mais de 10 ou 15 anos - eventualmente 25 ou 30 anos (risos) - para poder viver com autonomia. Podemos verdadeiramente aprender muito imitando comportamentos, e fazendo involuntariamente testes de erro e inferências inconscientes (talvez não voluntários) a todo o momento. Os nosso pais, os nossos professores, fazem isso: repassam conhecimento compartilhando seus comportamentos. Quanto mais "saudáveis" ou que mais nos pareçam "bons" forem esses comportamentos, mais seremos propensos a imitá-los. Por isso mesmo e da mesma forma, lares violentos e ambientes sociais violentos - muitas vezes os mais socioeconomicamente desfavorecidos e desprovidos de recursos de amparo - também podem ser implicados como fatores relacionados a comportamentos de violência nos adolescentes.

Pouquíssimas coisas parecem ser realmente "enfiadas" na nossa cabeça. São talvez conversas, atitudes, gestos, papos, e interações humanas entre gerações que nos permitem evoluir e construir a humanidade. A diferença entre as gerações é natural, a discriminação geracional, não. E por falar em livros e em educação, uma parte razoável dos livros são escritos quando somos um mais velhos! Que surpresa! O gráfico abaixo (em inglês), exemplifica isso. Ele traz as idades em que cada autor escreveu sua bibliografia. Se lemos um livro, e temos menos de 35 anos, poderemos estar tendo contato com alguém provavelmente mais velho, pela chance daquilo ter sido escrito (pela chance estatística que se supõe) por alguém que tem mais de 35 anos. A idade média de escrita desde grupo de livros mais vendidos sumarizados interativamente neste website, é de 48 anos. Agatha Christie publicou Curtain ("Cai o pano", no Brasil) aos 85 anos, e Harper Lee publicou em 2015 o livro Go Set a Watchman, aos 89 anos.

 

Lista em inglês de autores famosos e idade nas suas publicações. Boa parte dos livros publicados foram escritos após os 35 anos de idade dos autores, alguns com bem mais idade. Somos e podemos ser muito produtivos, mesmo após os 60 anos. Qual o seu sonho a ser realizado quando tiver mais de 60 anos? Por que não escrever um livro aos 70 anos? O português José Saramago (nascido em 1922) escreveu Ensaio Sobre A Cegueira em 1995 e ganhou um Nobel de Literatura em 1998, com mais de 70 anos de idade.

 

Os aposentados e a economia: a ideia errada de que os idosos são um estorvo para as sociedades

 

Dada a atual expectativa de vida, seremos provavelmente idosos que produzem, e nem toda produção é palpável. Podemos produzir afeto aos netos, conselhos aos adultos ansiosos das novas gerações e que trabalham mais do que devem, supervisão de crianças e adolescentes, tutoria culinária e domiciliar variada, "pitacos" de vida de forma geral... E, mesmo com dificuldades por conta da demência, nossas economias (se ainda resistirem as intempéries político-econômicas), continuarão podendo prover nossa família. Muitos idosos ainda são arrimos de família.

Geralmente se discutem os efeitos do impacto financeiro da demência nas famílias, com óbvias razões - mas o contrário, quando aquele idoso, mesmo com a doença, é provedor de bem estar para sua família - é algo muito menos discutido. O assunto é relevante de um ponto de vista prático e é algo que os profissionais de saúde sempre estão preocupados. Há inclusive alguns documentos sobre como lidar com assuntos financeiros dos idosos, como é possível encontrar neste texto da figura a seguir, produzido pela Associação de Alzheimer da Escócia (Alzheimer Scotland).

 

Documento completo, mas em inglês, o guia escocês "Demência: Dinheiro e Assuntos Legais", é bem detalhado, mas pode não ser o ideal para a realidade brasileira. Numa busca rápida, não encontrei ainda, até a data da escrita deste texto, um documento nacional equivalente e institucional.

 

A "gerontofobia", um termo um pouco mais "pesado" em termos conceituais, pode ser definido como uma crença de que os idosos representam um desperdício dos recursos da sociedade, e que representam um conjunto de valores e atitudes ultrapassados e tem raízes conceituais parecidas com aquelas do racismo. Em publicação sobre o verbete no site da Academia Brasileira de letras, vemos que a definição dada é "medo excessivo de envelhecer ou do processo de envelhecimento; aversão ou desprezo por tudo que se refere à velhice ou pelas pessoas idosas." A palavra vem do grego "gérōn ou gérontos", que significa velho, ou ancião.

Uma nota adicional. É importante lembrar que - não bastassem todos os termos, que estamos abordando aqui anda há o termo "velhofobia" em alguns textos, um termo que me parece apenas um sinônimo de gerontofobia. Portanto, seriam os termos gerontofobia e velhofobia a mesma coisa? Deixo aqui a provocação para os colegas pesquisadores relacionados à área para que os termos sejam melhor classificados e explicados, justamente para ter uma uniformização das traduções e uma melhor comunicação com a sociedade.

A crença de que os idosos são um problema - a gerontofobia - pode estar ligada a maus tratos. O medo de envelhecer é inclusive bastante prevalente por aqui, pois parece que cerca de 9 em cada 10 brasileiros tinha medo de envelhecer, segundo pesquisa de 2017 do Instituto QualiBest.

"A violência e os maus tratos podem ser físicos, psicológicos, sexuais, abandono, negligências, abusos econômico-financeiros, omissão, violação de direitos e autonegligência." - diz o Guia Prático do Cuidador, publicado como norma técnica pelo Ministério da Saúde. E continua, conceituando abuso econômico e financeiro: "consiste na apropriação dos rendimentos, pensão e propriedades sem autorização da pessoa. Normalmente o responsável por esse tipo de abuso é um familiar ou alguém muito próximo em quem a pessoa confia."

Criar um ambiente mais acolhedor e mais inclusivo aos idosos é pensar em longo prazo, é cuidar de nós mesmos em fases mais avançadas da vida. Qualquer atitude governamental, política, ou acadêmica em prol de promover um envelhecimento melhor será benéfica para nós mesmos. Envelhecer sem se preocupar com o futuro é envelhecer com baixa qualidade. Cairemos nos buracos das calçadas que hoje deixamos esburacadas. E seremos (muito) menos resistentes às quedas quando idosos.

Lidar com a aposentadoria também deve ser visto com uma preocupação que vai além do aspecto financeiro, seja para aqueles dependentes da previdência pública ou mesmo para aqueles que contam com outras fontes de renda para se sustentarem após saírem de seus empregos formais. A psiquiatra especialista em idosos Carolina Osório desenvolve esse tema em seu livro Stop Freaking Out About Retirement (Não Enlouqueça por Causa da Aposentadoria, ainda sem tradução no Brasil).

Usando como referenciais teóricos tanto a terapia cognitivo comportamental quanto a logoterapia, a Dra. Osório abrange no livro vários aspectos dessa fase da vida.  Ela nos mostra a importância de cuidar de aspectos físicos e biológicos, ensinando lições importantes sobre sono e alimentação, bem como do psicológico, discutindo pontos como crenças e definições de metas exequíveis. A psicogeriatra conclui a obra abordando as dimensões social e espiritual da vida e sua relação com a aposentadoria. Relembrar que mesmo após encerrar uma carreira é possível continuar vivendo com propósito e saudavelmente é uma das tarefas que profissionais de saúde podem cumprir no cuidado com seus pacientes mesmo antes de eles atingirem idades mais avançadas.

 

A Velha Surda, e a nossa saúde quando formos velhos

 

Não é incomum ver no idosos sendo travestidos de preconceitos. Esses preconceitos são muitas vezes relacionados a incapacidades físicas de doenças crônicas, causadas por males que não são necessariamente "doenças da idade", mas são somente doenças que são mais comuns, isso sim, comuns em idades mais avançadas. Isso é algo muito impactante para a saúde das populações.

Por falar em incapacidades em idosos, alguém se lembra ou ouviu falar da Velha Surda do programa televisivo A Praça É Nossa? A idosa, interpretada pelo ator Roni Rios (falecido aos 64 anos e que além de humorista era também médico veterinário), tem uma grave limitação auditiva. Ela retruca com interpretações hilárias e sempre equivocadas, tudo que lhe é falado. Aqui vai uma amostra desta personagem que fez muito sucesso na TV aberta do Brasil:

 
 

Vamos pensar um pouco. O que é a Velha Surda senão um adulto com mais idade que tem uma incapacidade auditiva? A exposição a fatores de risco, muitas vezes por nossos trabalhos insalubres e poucas possibilidades de acesso a saúde podem ser verdadeiros determinantes da velhice com incapacidade.

Não precisamos problematizar as piadas da Velha Surda, um texto leve de personagem da TV, mas trago a reflexão e o pensamento crítico sobre como as vezes zombamos de forma negativa de incapacidades físicas dos outros. Apontar somente as incapacidades pode ser o desfigurar real do problema do envelhecimento com baixa qualidade e com limitações sociais. Zombar disso pode ser zombar de nós mesmos no futuro... Por mais que sejamos talvez adultos privilegiados e ditos saudáveis, pouco sabemos o que nos espera nestes anos vindouros. Cabe a nós cuidarmos da saúde física e mental para termos uma boa velhice. Como médico, vejo que estamos pouco preparados para encarar uma velhice com incapacidades.

A propósito, existem muitas tentativas de transformar o envelhecimento humano em algo patológico, e este é um assunto sendo bastante discutido na comunidade científica ultimamente, com muitas visões contrárias e a favor da classificação. Teme-se que a transformação do envelhecimento em uma doença - ou num termo mais explicativo, num "processo de adoecimento" - possa de fato trazer mais estigmas que soluções práticas. Minha opinião pessoal é de que embora eu entenda os benefícios para a saúde da longevidade seja algo positivo, há alguns aspectos negativos para essa classificação.

De fato, em 2021, foi anunciado que se pretende incluir na nova classificação de doenças (a CID-11, ou décima primeira versão da CID), um código específico, um "código CID", para o envelhecimento, em substituição ao termo "senilidade", em desuso. A CID (Classificação Internacional de Doenças) é uma uma revisão estatística das doenças listadas pela Organização Mundial de Saúde. O temor sobre a formalização do processo de envelhecimento, após decisão polêmica da OMS recai portanto sobre possibilidades que isso possa dar mais poderes para indústria (farmacêutica e dos setores da saúde) e eventualmente aumentar preconceitos.

Sem clichês, a discussão realmente me parece também realmente algo filosófica e cultural (sem aspas), pois passa por uma série de interpretações sobre o que achamos da morte, sobre o que pensamos da finitude humana, e sobre a ideia de que seremos imortais, o que definitivamente não somos. Biologicamente, já tem até gente fazendo as contas, mas parece muito pouco provável que um ser humano viva mais de do que 120 ou 150 anos, na melhor das hipóteses. Pelo menos, é essa a matemática de um estudo recente publicado por pesquisadores russos em que discutem o assunto de uma forma clara e determinaram uma forma de como calcular uma boa estimativa da nossa expectativa de vida máxima. Ou seja, o "tratamento da velhice", as famosas "terapias "antiaging", poderiam até trazer alguns anos de vida, mas uma vida sem incapacidades será realmente possível? Ah, isso é uma história bem diferente...

E na pandemia? Bem, na pandemia, a maior tragédia da saúde do nosso tempo, o preconceito com os idosos ganhou algumas nuances a mais. Como sou médico e cuido de muitos pacientes idosos, uma notícia que veio da Indonésia relacionada à vacinação da Covid-19 também me chamou atenção. Muito embora os idosos sejam os mais vulneráveis na pandemia, morram mais, e sejam acometidos de maiores riscos por conta de suas doenças crônicas que carregam, foram colocados como prioridade secundária, pelo menos por algum tempo por lá. A estratégia foi questionada. A lógica econômica de que anos de vida perdidos de produtividade ocasionados pela morte de um jovem parece ter sido colocada acima da lógica humanitária de que a vida do idoso é tão importante quanto a vida do jovem.

Nem sempre seremos a idosa "fofinha" ou o idoso "fofinho", livres de doenças e das mazelas da vida. O ser humano pode ser, e é, muito frágil. Devemos sempre buscar a saúde plena e integral, mas os fatos existem. Há incapacidades decorrentes de acidentes, traumas, de fatalidades fora do nosso controle e envelhecer sem perda auditiva, sem perda visual, sem redução de habilidades motoras, sem perda cognitiva, com boa saúde mental, sem rugas, sem dor nas costas, não só é irreal, como é muitíssimo incomum. Por falar em capacidades cognitivas, elas não são ilimitadas quanto parecem. O cérebro hoje é entendido como um ente computacional biológico, e como qualquer computador, tem capacidades limitadas de processamento de dados, de armazenamento de informações.

 

A capacidade física funcional e sua relação com a idade. A vida sem doença pode ser interpretada pela linha azul (linha A). Nesta linha, o indivíduo sem doença preserva sua capacidade física e mental e só a perde ao fim dos anos de vida. Um indivíduo que tem uma doença aguda (linha amarela, B), a depender do acesso a meios de cuidado, ter uma boa recuperação, mas ainda assim, pode ter uma grande ou moderada perda funcional. Já na linha vermelha (linha C), podemos representar uma doença crônica, em que o tratamento e cuidados adequados podem dar uma qualidade de vida e alguma sobrevida relevante. Gráfico traduzido de publicação da OMS.

 

Se observarmos os dados do IBGE, veremos que a prevalência de incapacidades nos idosos é realmente alta no nosso pais. A própria ideia de perda social em anos de vida perdidos, os chamados DALY, refletem essas noções de vida com incapacidades, pois viver com incapacidades é comum. O ano de vida ajustado à incapacidade (DALY) é uma medida da carga total da doença, expressa como o número de anos perdidos devido a doença, incapacidade ou morte prematura. Ele foi desenvolvido nos anos 90 como uma forma de comparar a saúde geral e a expectativa de vida de diferentes países.

Como profissional de saúde, me preocupa termos como "combate ao envelhecimento" ou terapias "anti-aging" (termo geralmente traduzido do inglês e que significa algo como "tratamentos anti-idade"), como se o foco fosse combater o envelhecimento puramente, e não só aprendermos a conviver e lidar de forma sistemática com as incapacidades. Ainda não temos, e não teremos num futuro próximo, pílulas para a vida eterna. As medicações reduzem riscos de adoecimento e morbidades secundárias, mas daí isso aumentar estratosfericamente a nossa qualidade de vida não é algo palpável, o caminho é longo e muito difícil.

 

Política para quem precisa de política

 

Diante de todas as dificuldades, há muito coisa que dá pra fazer. A Organização Mundial de Saúde - em documentos - identifica seis determinantes-chave do envelhecimento ativo: econômico (1), comportamental (2), pessoal (3), social (4), serviços sociais e de saúde (5), e o meio ambiente físico (6). Destaco aqui os componentes que eles consideram fundamentais para uma boa resposta de políticas de saúde:

• Prevenir e reduzir o peso do excesso de deficiências, doenças crônicas e mortalidade prematura;

• Reduzir os fatores de risco associados às principais doenças e aumentar os fatores que protegem a saúde ao longo da vida;

• Desenvolver um fluxo contínuo de serviços sociais e de saúde acessíveis, de alta qualidade que atendam às necessidades e direitos das pessoas à medida que envelhecem;

• Fornecer treinamento e educação para os cuidadores.

As políticas para o enfrentamento do envelhecimento e das demências ainda podem ser tímidas, mas aos poucos vemos iniciativas como a Lei de Apoio às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências na cidade de São Paulo. A proposta pretende ainda criar Centros de Referência de Prevenção e Tratamento da Doença de Alzheimer e outras Demências, que seria formado por equipes multidisciplinares de profissionais da saúde. Nesse espaço, deverá funcionar serviços de educação em demência dirigido a profissionais da rede pública e cuidadores familiares. O grau de desconhecimento sobre a doença ainda é enorme e ser cuidador ou familiar parece não influenciar no conhecimento sobre a doença. Em 2021, também foi criada uma lei no Distrito Federal criando a Política Distrital para Prevenção, Tratamento e Apoio às Pessoas com Doença de Alzheimer e outras demências (aqui).

Segundo documento da Alzheimer Disease international de 2021, o Brasil ainda tem questões a gerir, com a necessidade de programas mais amplos. Houve pouco avanços em políticas para a área nos últimos anos (considerando o Brasil em estágio 2B, em estágio chamado em que o progresso foi considerado “estacionado”, em uma classificação que vai até 5A, 5B, e 5C), estes últimos estágios para países com planos amplos, monitorados, e corretamente financiados. Este é o quarto relatório do plano de impacto da organização e fornece uma atualização sobre o plano de ação global da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a resposta da Saúde Pública à demência para os anos de 2017-2025.

O Estatuto do Idoso, também foi um marco no combate ao preconceito contra idosos e converge com estas iniciativas específicas para demências. Mas, para que esse  combate seja efetivo e amplo, precisamos garantir também a qualidade do cuidado em saúde aos idosos. Pode ser necessário que os profissionais de saúde tenham este treinamento para identificar e tratar as demandas específicas dessa população. Considerar, por exemplo, equivocadamente, esquecimentos ou uma redução das atividades em idosos como fenômenos normais pode retardar o diagnóstico de uma síndrome demencial ou de um episódio depressivo.

Além de várias atividades e atitudes possíveis para reduzir os preconceitos, indo de ações de promoção à saúde de pessoas com mais de 60 anos, até projetos que incentivam a manutenção e recolocação de profissionais experientes no mercado de trabalho também são importantes para essa mudança de mentalidade em relação aos idosos. A expectativa é que haja mais iniciativas nesse sentido, preservando a imagem do idoso como base de cultura, harmonia geracional, e um reflexo da nossa própria empatia com nós mesmos, num futuro não muito distante. O tempo voa, e queremos ser bons velhinhos. Ou apenas chamados de jovens, ou somente jovens há mais tempo. O bom mesmo, é encarar a vida numa boa, como diria Lulu Santos. E evitando isso tudo de ruim: o idadismo, o etarismo, o ageísmo, a gerontofobia, e o velhicismo.

 

Música: Tempos Modernos. Intérprete: Lulu Santos. Compositor: Luiz Mauricio Pragana Dos Santos. © Warner Chappell Music, Inc.

 
"Hoje o tempo voa, amor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
Não há tempo que volte, amor
Vamos viver tudo que há pra viver"

 

Escrito e revisado em conjunto por Alan Cronemberger Andrade e Jonathan Assis (@jonathan.deassis, no Instagram). Publicado originalmente em 1º de outubro de 2021, às 14:00h (UTC-3 BRT). Última atualização em 15/03/2023, às 22:00h (UTC-3 BRT). Créditos da foto de capa, a Skiathos Greece. Todos os direitos reservados.

E, atenção. Todos podemos encaminhar denúncias de violações de direitos humanos. Isso pode ser feito de maneira anônima pelo Disque Direitos Humanos, o Disque 100. Se presenciar um caso de maus tratos a idosos, a denúncia neste e em outros canais é anônima.

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